Bernard Charlot: "O conflito nasce quando o professor não
ensina"
Pesquisador francês afirma que,
quando falta reflexão no saber e prazer e aventura em classe, a escola perde o
sentido original
"Há duas línguas
diferentes sendo faladas na escola: a dos professores e a dos alunos."
Para Bernard Charlot, professor de Ciências da Educação da Universidade de
Paris 8 e da pós-graduação da Universidade Federal de Sergipe, essa tensão
existe porque os dois lados desconhecem o prazer do saber. Sem dramatizar os
conflitos nem apresentar vítimas e culpados - o que seria muito simplório para
uma questão tão profunda -, o pesquisador passou quase 20 anos estudando,
principalmente em escolas da periferia da França, a relação que as pessoas
estabelecem com o conhecimento. Os jovens gostam de aprender? O que determina o
interesse pelos estudos? Seu objetivo principal é descobrir por que alguns
adolescentes pobres não avançam na Educação formal, enquanto outros se revelam
bem-sucedidos. Grande parte dos trabalhos foi realizada pelo grupo de pesquisa
Escol (Educação, Socialização e Coletividades Locais) na Universidade de Paris
8 desde 1987. Um dos pontos de destaque é a semelhança entre os educadores
brasileiros e franceses. A hipótese é que existem situações, como as de ensino,
que são universais. Hoje, Charlot acompanha de perto a realidade das escolas
brasileiras, principalmente as do Nordeste. Aos 62 anos, vive em Aracaju,
casado com uma professora brasileira. A seguir, os principais trechos da
entrevista realizada em São Paulo.
Por que a relação entre alunos e professores é
tão difícil?
BERNARD CHARLOT Para os alunos, há uma lógica no ato de estudar e,
para os professores, há outra. Ouço muito das crianças: "Fui a todas as
aulas, estudei em casa e não concordo com as notas que recebi". O
professor retruca, afirmando que o estudante é preguiçoso e não entendeu a
matéria. Esse descompasso revela o grande abismo que existe entre as pessoas e
interfere no processo de aprendizagem.
Quem está com a razão, os professores ou os
alunos?
Charlot O objetivo de minhas pesquisas não
é encontrar vítimas e vilões. Os dois lados têm suas razões. E digo isso com
sinceridade. Qual a trajetória de alunos e professores na construção do saber?
Isso sim é importante e explica o ponto de vista de cada um. Estudar a ótica do
outro é a primeira lição que alunos e professores precisam aprender. Mesmo
assim, o diálogo verdadeiro ainda é muito difícil.
Qual é o sentido da escola para os alunos?
Charlot As crianças francesas acham que,
como seus pais, que ganham por hora de trabalho, deveria ser recompensado pela
quantidade de tempo passado em frente dos livros. Ou seja, as notas deveriam
ser proporcionais ao estudo. Mas, é óbvio, essa não é a lógica da escola. A
instituição escolar defende que, se o estudante não fez as tarefas, não leu nem
adquiriu um saber intelectual, ele pode ser reprovado. Para esse aluno, isso é
uma injustiça, algo ilógico. A maioria dos estudantes gosta de ir à escola para
comer, namorar e brincar. Nunca ouço que é um lugar para aprender. Para eles,
os estudos, os trabalhos e as pesquisas existem para atender apenas aos
interesses da escola. Assim, professores pensam que ensinam e alunos pensam que
estudam.
Como fazer os alunos
estudarem e os professores ensinarem de fato?
Charlot
Há milhares de motivos pelos quais os jovens imaginam que a escola é o lugar do
lazer e não do saber. É importante descobri-los, mais do que criticar. Os
conflitos nascem quando o professor explica algo que não é compreendido. Ainda
tranqüilo, e com outras palavras, ele explica de novo, e outra vez sem sucesso.
Rapidamente, ele vai considerar o estudante um incapaz. O educador culpa o
aluno, mas se sente fracassado também porque a turma não avança. O jovem, por
seu lado, pensa que o professor não sabe ensinar. O clima fica tenso e uma
coisa sem importância vira estopim para uma agressão verbal ou física.
O professor não age dessa forma porque está
sobrecarregado de tarefas?
Charlot Ser professor hoje em dia é uma
missão quase impossível. É preciso ter jogo de cintura para enfrentar as
diversas contradições. O aluno vai à escola sem ter recebido uma socialização
prévia. No passado, quando apenas uma pequena parte da população tinha acesso à
Educação formal, não havia esse problema. Os pais preparavam os filhos para
essa etapa da vida e os irmãos mais velhos, que também freqüentavam a escola,
ajudavam os mais novos. Porém, quando toda a população passa a estudar, você se
vê diante de crianças que não foram preparadas para as situações de
aprendizagem. A dificuldade atual da escola é conseqüência da democratização. E
quem há de reclamar disso?
Por que tantos professores criam imagem de um
aluno ideal?
Charlot Essa questão é muito complicada. O
professor espera encontrar em sala de aula um clone ideal dele mesmo, ou seja,
uma pessoa que ele gostaria de ser: crítico, reflexivo, leitor e dedicado. Mas
o professor também deseja alunos obedientes. E essa contradição é insolúvel.
Como ser, ao mesmo tempo, obediente, crítico e inquieto com a realidade? Na
verdade, os critérios estão quase sempre baseados no comportamento: muitos
acreditam que o bom aluno é aquele que não atrapalha o andamento da aula, chega
na hora certa, levanta a mão para fazer perguntas inteligentes e conta com o
interesse dos pais pelos estudos.
E os alunos, o que esperam dos professores?
Charlot Uma vez ouvi esta frase:
"Gosto muito do meu professor porque ele nos trata como seres
humanos". Ilude-se quem pensa que os meninos e as meninas esperam um amigo
ou um colaborador mais velhos. Os jovens querem se relacionar com um
profissional maduro. Outro ponto importante: eles não querem ser números. Não
há nada pior para uma criança ou um adolescente do que encontrar seu professor
na rua e não ser reconhecido. Os jovens não agüentam ser tratados como
anônimos. Isso confirma uma das principais competências que se espera de um
profissional da Educação - a capacidade de se relacionar. E acrescento: com
humor, que é o melhor remédio para enfrentar as contradições do universo da
Educação.
Sempre houve conflito entre quem ensina e quem
aprende?
Charlot Sim, porque existe uma tensão que
faz parte do ato pedagógico. O primeiro problema que o docente enfrenta é não
produzir diretamente seu trabalho. Explico: o que faz o aluno aprender é sua
própria atividade intelectual, não a do mestre. O trabalho do educador é
despertar e promover essa atividade. É assim, sempre foi e sempre será, em
qualquer sociedade e época. Se o estudante fracassa, a culpa é do professor,
por mais que ele não tenha o poder de enfiar o saber dentro da cabeça do jovem.
Essa tensão se converte facilmente em conflito quando o aluno se sente
pressionado ou enganado. Mas os conflitos nem sempre são negativos. Penso que é
uma sorte viver tantas contradições. Para ser feliz é preciso renunciar a uma
idéia enganosa de felicidade. O humor, a reflexão e o prazer são imprescindíveis
para aceitar as diferenças e é isso que permite avançar. Já imaginou uma escola
sem conflitos? Seria muito monótona.
Qual é o maior problema no dia a dia escolar?
Charlot A avaliação é campeã de dúvidas,
discórdias e desatinos. Precisamos refletir mais sobre o assunto. O modelo
baseado em assinalar uma alternativa, em certo ou errado, em verdadeiro ou
falso, não mede a atividade intelectual. Essa história começou quando o Brasil
passou a selecionar alunos para o curso de Medicina, como nos Estados Unidos. Os
saberes científicos podem ser medidos em falsos e verdadeiros, mas não os
conteúdos de Filosofia, Língua Portuguesa, Pedagogia e História. É um absurdo o
que se vê aqui. Até na Educação Infantil já se encontram vestibularzinhos. Esse
erro a França não comete. É verdadeiro que o Sol se põe no oeste? Sob um ponto
de vista, sim. Sob outro, não, já que o Sol não sai do lugar. O mundo do
verdadeiro ou falso é do fanatismo e não da cidadania. Nega a reflexão e o
saber e impede que os alunos leiam, escrevam e aprendam.
A relação do jovem pobre
e do rico com a escola é a mesma?
Charlot
Uma pesquisa feita na França com estudantes do Ensino Médio
mostrou que eles usam o que foi aprendido na escola para pensar e construir
novos saberes. Eles conseguem fazer essa transposição. Não há relação direta
entre fracasso escolar e classe social. Apesar de, em termos estatísticos,
existir uma probabilidade maior de alguém de classe popular fracassar nos
estudos, muitos são bem-sucedidos. Mas também há uma grande quantidade de
filhos da classe média que são reprovados. Minhas pesquisas têm por objetivo
entender o que acontece especificamente com os que enfrentam dificuldades. Se o
pai é imigrante, está desempregado ou ausente, não importa para a análise, mas
sim o que a criança faz dessas condições. Para isso, precisamos saber se ela
estuda e, principalmente, por que estuda - ou seja, que sentido tem a escola
para ela. Esse aspecto é interessante e inusitado.
Que motivos levam uma criança pobre a querer
estudar?
Charlot A maioria dos alunos acredita
desempenhar seu papel em ir à escola todos os dias, não fazer muitas bobagens e
escutar o professor. Enfim, cumprir um protocolo. Eles vão à escola para passar
de ano até conseguir um trabalho, dinheiro e uma vida considerada normal - e
não necessariamente para construir capacidades. A primeira lição que aprendem é
obedecer. E aí se vê um pacto silencioso de cumplicidade com os professores:
"Você obedece e não atrapalha minhas aulas. Em contrapartida eu só passo
lições e provas fáceis". Para outros jovens, o estudo é uma conquista
permanente que exige muita força de vontade, esforço e dedicação. No geral,
pobres e ricos apresentam as mesmas características. Nos dois lados,
encontramos o tipo que não sabe o que está fazendo no colégio.
É papel da escola garantir o sucesso profissional
dos alunos no futuro?
Charlot Eu estou convencido de que não, apesar
de essa ser uma questão muito presente hoje. Quando perguntamos a alguém por
que ir à escola, a resposta imediata é "obter um emprego". Muitos se
esquecem de que não é a escola que garante o emprego. Ela tem outro papel, bem
mais amplo e importante. Para conseguir uma boa colocação no mercado de
trabalho, é preciso adquirir saberes, desenvolver a imaginação, construir
referências para entender o que é a vida, o que é o mundo e o que é a
convivência com os outros. Há uma grande perda de tempo e energia quando isso
não acontece. Todos se sentem lesados, e não poderia ser diferente.
Quando não garante esse sucesso no mercado de
trabalho, a escola acaba por punir os mais pobres.
Charlot Quando a Educação se preocupa demais com
o mercado de trabalho, ela exclui os mais pobres. A escola e o saber ainda são
a grande chance de ascensão social para muitos e estão se tornando uma maldição
para os jovens mais fracos e mais desfavorecidos economicamente. Quem não tem
um diploma não consegue emprego, certo? O mesmo vale na França, no Brasil e em
qualquer lugar do mundo. A escola ideal é aquela que faz sentido para todos e
na qual o saber é fonte de prazer. Isso não quer dizer que dispense esforço. O
esportista, para ter satisfação, se empenha muito. Ainda hoje, um grande número
de professores pensa que sua função é dar respostas, mas elas não significam
nada se não houve um questionamento anterior. Os estudantes estão decorando
coisas que nem sequer entendem. O trabalho do professor é fazer nascer novas
questões e o interesse pela escola. Caso contrário, ele gasta o ano letivo em
embates sem solução.
Como seria uma escola com a cara do jovem?
Charlot
O jovem não quer uma escola com a cara dele, mas uma que
faça a ponte entre a história coletiva do ser humano e sua história individual.
Uma escola com a cara do jovem teria a cara da Xuxa. Urgh!